Page 114 - Da Terra

SACRO FILHO DO SOL
Os rapazes tocavam o búzio e as raparigas cantavam. Quem canta, seus
males espanta. Aquilo é que eram palmas. Ai, filho, sofrimento foi o que eu
ve na vida. Éramos apanhadas numa camionete de tromba comprida,
íamos pela noite que de dia não se podia. Ganhávamos 10 escudos, de sol a
sol, a carregar cestos em pau pesados que eu sei lá. Levavam a gente pela
fresca e já sol-posto nos traziam. Mulheres e homens tudo ao mesmo.
A gente só não pisava. Depois casei e fui para a França. E foi lá que ouvi dizer:
Vin, fils sacré du Soleil ! como messes que desejamos duradouras. Agora os homens ocupam-se com o sustento dos seus asilos electrificados,
Sabe o que é? Vossemecê de onde é se não é da minha conta? Foi quando
o sol acabou na minha vida. Meu marido teve um acidente, não podia
apanhar sol, e largámos o campo. Também eu fiz o meu êxodo. Ele
trabalhava na fábrica e eu fazia limpezas e o que aparecia. E por ter
perdido o sol foi que o vinho me alumiou. Vin, fils sacré du Soleil! Saberá
vossemecê o que é? Eu ouço contar que há quem beba querendo
esquecer ou para perder a noção do mundo, mas comigo passou-se de
outro modo. Não fora ter o sol tão fora de mim, jamais um pingo desse mal
teria entrado no meu corpo. É do pior que se pode fazer, beber às
escondidas. Nem para esquecer, nem para perder a noção do mundo, nem
para morrer aos bocados. Comigo foi assim: queria o sol dentro de mim.
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FELICIDADE
Vejo na televisão uma recons tuição dos primeiros homens palmilhando quilómetros de terra com suas tribos, armados de
lanças e de pedras, tapados com peles mal cur das, buscando abrigo em cavernas escuras onde terão aprendido a atear o
fogo que aquece e ilumina. E o fogo projectava nas paredes sombras monstruosas que logo os povos se encarregaram de
colorir com sangue extraído ao barro de que eram feitos. Nos seus olhos luziam preocupações futuras, ter o que comer para
se manterem ver cais, encontrar refúgio onde pudessem sonhar es rando por instantes a ver calidade com que
enfrentavam inimigos. Milénios passaram sobre a chama da fogueira ex nta da qual sobram nuvens de fumo espalhadas
pelo vento e um certo cheiro a queimado, um pouco por todo o lado presente.
Estamos no Outono, é a época das queimadas, e eu planto a felicidade na página branca destes chãos onde brotam palavras
hipotecam a carne do próprio corpo a troco de um trabalho que permita cobrar facturas de água, luz e gás. Os homens
quase abandonaram a caça para serem presas tanto do medo como das suas próprias ambições, vão ao supermercado
abastecer-se sem se darem conta do quanto deles apodrece exposto nas prateleiras.
Pelos carreiros, pelos matos, felicidade bateu vales para que o gado pastasse a força com que as terras deviam ser lavradas.
E agora plantado diante dela eu só consigo pensar que quando a guerra estalar os poetas serão os primeiros a fechar-se em
casa, ligados a computadores produzidos com materiais extraídos por escravos em países subdesenvolvidos. De que cepa
eram feitas tais mulheres? O medo só não vence a fome, a fome só não vence a morte. Quando a guerra estalar dificilmente
dis nguiremos conservadores de progressistas. Uns terão cara de parvos, outros terão cara de tolos, e nada será como
dantes excepto o sangue derramado. Quando a guerra estalar, os vanguardistas quedarão está cos na linha mais recuada
de um pelotão de inúteis, discu ndo a cor do céu quando na noite escura explodirem granadas para que nem a lua
deslumbremos a olho nu. Quando estalar a guerra e os canais de armazenamento entupirem com destroços de edi cios
desmoronados, alguém no seu canto enfim perceberá que o medo só não vence a fome, que a fome só não vence a morte.
Guerra é estar vivo. E pronto.
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